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O Canto do Rio (conto) - Igor Bueno

O Canto do Rio - Igor Bueno


Na beira de um Rio tinha uma carta endereçada às aguas. Estava na ponta do dedo do Rio, prestes a ser descartada, sem o embaralhar das palavras em ondulações, sem a acalantada dissolução de ser obra, obreira, o que percorre o entre ou o que transborda.


Era começo da noite, a Lua granularmente iluminava a carta, como um rastro de tinta minguante. Entre o Rio, a Lua e eu haviam espaços preenchidos pelo vento em seus assovios. Eram espaços de passos compridos, longos, inquebráveis pelo tempo.


O Rio bravejava! Inquietante corria a parecer fugir de si, temeroso para com a Lua, com fúria das dúvidas que o secavam, das pálpebras que não aceitavam se abrir para o novo. Jamais voltaria a ser quem era se a coragem o habitasse.


A esquecer o doce que o lavava, cortava pedras e de tanto impulso quase como se o fogo o tomasse, sentimentos eram postos contra a corrente. Habituar-se a sua história lhe custara tantas léguas. O que o mantinha enquanto Rio era um badalar de experiências e o abalo de seu âmago para um possível viver seria tecer em lágrimas os caminhos. As gotas salpicadas às estrelas, prestes a abarcar seu coração, soavam como ruído. Nadava em si convicto, ignorando os assovios dos ventos...


A Lua, enamorada à Terra, pacientemente lhe ofertava lembretes, todas as noites, se fazendo preta, branca e expoente de passagens. A poesia em cartas destinadas às nascentes, córregos, pingos escritos adentro de cada ser, traziam proximidades às águas e arqueavam o Céu ao Mar como retratos do infinito, da vida em constância e do mergulho fluvial para a liberdade.


O Rio tinha medo de ser tomado pelo Céu, por isso fugia da Lua. Não se permitia amar, por isso fugia do Mar. Seria abdicar de si enquanto somente si. Se ao risco do beijo da vida e da morte lhe faria mudar os cursos, limitava sua imensidão as mesmas paisagens.


Eu, ao sentir as preces da Lua, suas danças com a luz e sombra, sua festa em cantado lamento de despedida com o Sol, dia após noite, noite após dia, fui aprendendo as cantigas, tão antigas e novas, chovendo em meu peito e nas matas a volta. Aos poucos fui regando minha garganta, com água da Lua, escutando o bradar do Rio, o pingar do Céu e seus filhos passarinhos. Cantei ao Rio as vozes da Lua, cantei ao Mar os medos do Rio, cantei ao Sol as minhas pegadas e à Lua os meus córregos.


Peguei a carta, ainda sóbria, molhei, encharquei, soprei ao Rio todos os fragmentos como se não houvesse amanhã e aquela fosse nossa última noite. Ao escancarar de vez as janelas do meu coração-canção, versos iam tornando-se redemoinhos espiralando saias em fortuna e paixão. Nos embriagamos de nós tanto que ao adormecer fora como se finalmente acordasse. Na fresta última de meus olhos ao silêncio, vi o Rio se lançando à Lua, virando Mar, beijando o Céu e jamais deixando de ser, também, Rio.

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